Dez obstáculos do antes.

Foi no primeiro post deste blog "O Chamado", feito em 01 de Fevereiro de 2012, no qual elenquei uma série de obstáculos que tinha de enfrentar antes de partir para o Caminho de Santiago de Compostela.

Esses obstáculos foram sendo enfrentados e encarados um a um, cada um em seu tempo, e agora vou contar brevemente como resolvi cada um deles antes de entrar no próximo post que vai contar como foi o último dia no Brasil.

01 - Aval da Família;

Meu Pai:

Marcel: Pai, vou fazer uma coisa diferente, uma aventura que é quase uma loucura.

Newton: O que você vai fazer?

Marcel: Nas minhas férias vou andar mais de 800km na Espanha, fazer um tal de Caminho de Santiago da Compostela. É uma perigrinação muito antiga, com mais de mil anos de existência.

Newton: A Espanha é legal, estive em Madri a muitos anos atrás. A Paulinha e a Julinha vão?

Marcel: Não Pai, vou sozinho mesmo, são 800km andando, tudo que eu levar em minha mochila vai ser tudo o que tenho, não dá para levar a Julinha nem a Paulinha neste tipo de viagem.

Newton: Iiiiii, você tem um problema rapaz. A Paulinha deixou você ir?

Marcel: Sim conversei muito com ela. Ela não está feliz, na verdade bem relutante com minha ausência de mais de 30 dias.

Newton: Trinta dias!?!?!! E o seu chefe deixou?

A conversa acima aconteceu por volta de Maio de 2012. Ela ilustra bem como meu Pai se preocupava não em entender a viagem, mas na verdade em como eu ia deixar as coisas aqui e as pessoas que estavam em volta.

Apesar da idade, são 86 anos, ele conserva uma lucidez incrível, ainda trabalha na Federação Paulista de Boxe como Presidente da entidade e leva uma vida muito independente. 

A vida dele foi o Boxe, ele sempre viajou muito como jurado de disputas de títulos mundiais e também como jornalista esportivo.

Sempre me recordo do meu Pai voltando de viagem. Eu sabia que ia chegar em tal dia pois minha Mãe nos avisava. Ele sempre trazia presentes para mim e para meu irmão, era um momento importante em nossas vidas esperar pelo meu Pai. Ficávamos atentos, olhando para a porta, esperando o barulho da chave, que quase sempre caia no chão antes de abrir a porta, era a marca registrada dele.

A felicidade de reve-lo após um período de ausência era enorme, sempre tive uma conexão maior com meu Pai do que com minha Mãe.

Ele chegava com um sorriso no rosto, e com a famosa mala de viagem. Eu e meu irmão sentávamos ao redor da mala, esperávamos ele iniciar o ritual de abertura para descobrir os presentes que ele trouxe. Era um momento mágico para nós dois.

Sempre tive a impressão que dificilmente teria o mesmo tipo de vida que meu Pai teve, mas o tempo foi me enganando e me levando para um caminho parecido.

Meu Pai trabalhava muito, e apesar de trabalhar na mesma quadra de onde morava ele ficava pouco tempo em casa conosco. Eu não moro tão perto assim, na verdade estou a 50 minutos de carro do escritório, também me dedico muito ao trabalho e fico sempre devendo tempo para minha família.

Newton Campos e Don King

O Velho viajava muito, as lutas que ele era jurado, as convenções do Conselho Mundial de Boxe (WBC), as viagens para cobrir eventos de boxe, as viagens dos eventos de Boxe pela Federação Paulista. Todo mês ele estava um período fora de casa fazendo alguma viagem. Eu também acabei seguindo os passos dele, viajo muito, viagens a Taiwan para o Quartel General da ASUS, viagens para a Califórnia no Vale do Silício para reuniões trimestrais de prestação de contas da empresa no Brasil, viagens para trabalhar em feiras internacionais como CES em Las Vegas e Computex em Taiwan, viagens para visitar clientes em todo o Brasil. 

Ultimamente posso dividir o tempo da minha vida em três partes iguais, uma em São Paulo/Santo André, a segunda em cidades diferentes pelo mundo e a última dentro de aviões e aeroportos.

Gosto de trabalhar pois trabalho com o que eu mais amo que é tecnologia, amo viajar pois herdei este sentimento do meu Pai acompanhando ele em muitas viagens. Literalmente me sinto muito bem nestas situações, mas a distância de minha Esposa e Filha vêm ficando mais pesada a cada ano e gastar as minhas férias ficando 37 dias longe não é algo fácil, mas preciso fazer isto.

Hoje me pergunto se foi por acaso que tenho estas similaridades com a vida do meu Pai ou se simplesmente usei isto inconscientemente almejando, sem saber, chegar um dia em algo parecido a vida que ele tinha.

Pois bem... no final acabei recebendo o aval dele de uma maneira bem peculiar como só ele sabe fazer:

Marcel: Tudo bem eu ficar 37 dias fora em viagem? Se precisar de algo a Paulinha e o Carlos (meu irmão) vão estar por aqui para te ajudar.

Newton: Pode deixar, vai lá, mas cuidado hein, 800km andando não é para qualquer um não, vê se toma cuidado hein Marcel.

Marcel: Pode deixar Pai, estudei bem o Caminho, sei o que estou fazendo e quando voltar vou ter muitas histórias para te contar.

Newton: Bem.... tá bom... agora vamos assistir o jogo do Corinthians.

Minha Filha:

Apesar de ter apenas dois anos e meio de idade a Juju já entendia tudo o que conversávamos.

Minha maior preocupação com ela era de ficar tanto tempo fora sem ver o Pai. Trinta e sete dias sem me ver, seria tempo demais, nunca fiquei tanto tempo longe dela.

No passado, em algumas viagens de 15 dias a Taiwan, quando voltava ela me rejeitava, não queria vir no meu colo e virava a cara. Demorava um dia inteiro, e as vezes só no dia seguinte para voltar a interagir comigo e a me chamar de Pai. Nossa.... como isso destroçava meu coração.

Resolvi preparar a cabeça e o coraçãozinho dela para tamanha ausência. Tinha que envolver ela no contexto, resolvi então começar a contar para ela no tom de como eu conto uma história de um livro, assim quem sabe ganhava mais a atenção dela.

Marcel: Juju, o Papai vai fazer uma graaaaaande viagem. A maior viagem da vida dele!

Juju: Você vai para a Disney?

Marcel: Não filha, para a Disney vamos todos juntos depois, nessa viagem só o Papai vai.

Juju: Não vai pra Disney então?

Marcel: Quando eu voltar desta viagem prometo que vamos todos para a Disney, mas esta graaaande viagem só o Papai vai, e vou ficar um tempão fora.

Juju: Pra onde você vai?

Marcel: Vou para a Espanha filha, Papai vai fazer um Caminho mágico chamado Caminho de Santiago de Compostela!

Juju: Onde fica a Espanha?

Marcel: Fica na Europa, muito longe daqui. Vou caminhar um teeeempão por lá, e vou sentir muita saudades suas e da mamãe.

Juju: Europa..... Traz presente Pai.

Marcel: Lógico, o que você quer?

Juju: Quero um sapato Pai.

Eu também tentava ilustrar para ela a viagem, mostrava fotos da internet de vez em quando, pegava a minha mochila e contava para ela o que era aquilo, se bem que toda vez que eu pegava a mochila ela me perguntava se eu não ia para a Escola.

Quando organizei todos os itens em cima da mesa de casa ela não parava de perguntar o que era isso, o que era aquilo, para que servia tudo aquilo.

Ela sempre foi uma menina participativa e queria sempre se envolver em tudo que estávamos fazendo. Ainda me lembro quando peguei as roupas para colocar na mochila ela virou para mim e disse: "Pai, pera ae que eu te ajudo a escolher a roupa e o sapato.".

Nos últimos dias quando mencionava a viagem para a Espanha ela sempre perguntava da Disney, mas desta vez ela dizia. "Espanha Pai.... quando você voltar vamos para a Disney né?!" 

Minha Esposa:

Com a Paula a situação toda que envolvai a viagem era algo muito difícil dela aceitar. Infelizmente ela sofria cada vez mais com a viagem. Inconformada de como eu poderia fazer isto com elas, deixando-as sozinhas por tanto tempo em vez de curtir as minhas férias junto com elas.

Apesar de sempre me apoiar desta vez ela era contra radicalmente.

Eu entendia perfeitamente o ponto dela, ela tinha toda a razão do mundo, mas o Chamado para o Caminho dentro de mim era incontrolável, era maior do que eu.

Foram inúmeras as conversas e discussões que tivemos. Chegávamos ao ponto de evitar qualquer conversa sobre o Caminho assim consequentemente evitávamos brigas e aborrecimentos.

Conforme ia se aproximando da data da viagem ela mudava o comportamento. No começo quando falei do Caminho pela primeira vez ela não deu muita bola.

Depois quando comprei a passagem ela já começou a encarar de um modo bem diferente pois a passagem é uma afirmação de que a viagem existe, a verdadeira materialização de algo antes intangível pois agora tem data e hora marcada para acontecer.

Nas últimas semanas parecia que eu tinha declarado guerra e que meu País estava sendo invadido pela revolução Paula Caçapava.

A pressão que a futura ausência da viagem exercia sobre ela era enorme, e ela devolvia isso para mim diretamente numa tentativa de me mostrar como ela se sentia mal com a situação.

O processo todo do antes foi muito dolorido para ela. Eu via o quanto mal estava causando a ela e me sentia culpado por isto, parecida que a dor voltava em dobro para mim, a última coisa que eu queria é que esta viagem se tornasse um peso para outra pessoa ainda mais para alguém que amo tanto como minha Esposa.

Nos últimos dois dias ela acalmou e mudou o comportamento, a Paula que sempre me apoiou apareceu, mesmo indignada ela apareceu e novamente me apoiou, como sempre fez.

Somos dois cabeça duras isso sim, mas desta vez era algo que eu não poderia explicar direito com palavras pois era apenas um sentimento, um sentimento maior do que eu que todo dia me dizia que eu tinha que ir.

02 - Aval do superior na empresa;

Como chegar para meu chefe e pedir 37 dias de férias sem perder o emprego?

Esse pensamento martelou minha cabeça por dois meses.

Eu tinha que organizar minhas idéias, encontrar a melhor data que casasse com o período de final de Verão e entrada do Outono na Espanha, desse modo não enfrentaria tanto calor nem tanto frio. 

Olhando no calendário de cara pude perceber que existia uma janela para isso. Em Setembro deste ano existem dois feriados que caem na sexta feira. O primeiro era no dia 07 de Setembro, Independência do Brasil, e o outro no dia 12 do mesmo mês, dia de Nossa Senhora. Se eu iniciar minhas férias de 30 dias (algo raríssimo de se conseguir hoje em dia) no dia 10 de Setembro devo retornar no dia 11 de Outubro, um dia antes de outro feriado. 

Precisava então de 30 dias de férias e uma folga de um dia, o que era bem plausível uma vez que sempre viajo de finais de semana a trabalho. 

O plano era partir do Brasil no dia 06 a noite, uma quinta-feira pré feriado, e assim ganharia 03 dias até o início formal das minhas férias, depois disto voltaria só no dia 12 de Outubro, porém sendo feriado voltaria somente na segunda-feira pós feriado, ou seja somente no dia 15 de Outubro totalizando assim 37 dias possíveis de viagem. Com isso teria 03 dias de viagem para chegar em Saint Jean Pie de Port na França e 03 dias de viagem para voltar para o Brasil, com 31 dias reservado para o caminho e com datas definidas de saída e chegada estava pronto para comprar a passagem, e acabei comprando elas antes mesmo de pedir o aval do meu chefe. Um risco totalmente desnecessário, mas minha convicção de fazer o Caminho era maior do que meu lado racional naquele momento.

Comprei a passagem no começo de Fevereiro, até porque eu estava tão convicto que deveria fazer o Caminho neste ano de 2012 que após encontrar a data perfeita não tive a menor duvida.

Naquele moment0 sacramentei minha viagem, agora não tinha mais jeito, passei a ter data marcada com Santiago, o Santo, a Cidade e o Caminho.

Caramba, já ia esquecendo, o meu chefe!

Tinha que bolar uma aproximação infalível, algo que nenhum chefe no mundo pudesse negar, afinal já tinha passagem e tudo em mãos.

Chamei o homem em Maio para conversar em particular.

Me lembro bem desta conversa, foi bem assim:

Meu chefe: Alexandre Wu

Marcel: Wu, preciso falar com você sobre minhas férias.
Wu: Tá.

Marcel: Não sei se você sabe mas sou uma pessoa muito religiosa e este ano preciso fazer um a perigrinaçao.
Wu: Hã!?

Marcel: É isso mesmo Wu, preciso de 30 dias de férias.

Wu: Tá bom. Quando?

Marcel: Pera ai. Você não quer saber pra onde vou?
Wu: Pra onde você vai?

Marcel: Vou para Espanha, fazer o Caminho de Santiago de Compostela.
Wu: Ta ficando famoso esse Caminho no Brasil. Muitas pessoas já o fizeram.

Marcel: Sim, bem famoso.
Wu: 30 dias né. Tá bom. De quando a quando?

Marcel: Saindo dia 10 Setembro e retornando dia 15 de Outubro.
Wu: OK, mande o e-mail para mim e comunique o RH.

E em menos de 05 minutos de conversa tudo resolvido.

Nem sou tão religioso assim, mas apelei para algo que ele não poderia me negar, tinha que jogar com todas as armas para ter certeza de que conseguiria as férias e o período desejado. No final deu tudo certo, mais rápido e fácil do que eu poderia imaginar.

Como diz Paulo Coelho... Maktub!

03 - Preparação física adequada;

Já contei muito sobre isso no post intitulado "O Preparo", mas vale lembrar que mesmo despreparado fisicamente já havia me informado de duas coisas que não saiam da minha cabeça.

A primeira têm a ver com a memória dos músculos, se você chegou a se preparar alguma vez, em um determinado período no passado, quando seu corpo voltar a enfrentar aquelas condições de esforço você vai estar mais preparado, pois já é sabido do seu corpo onde dói, quanto dói, o que é uma dor normal, o que é uma dor anormal, o que se recupera rápido e o que não se recupera rápido.

Seu corpo também vai reagir mais rápido para voltar a antiga forma se o ritmo empregado for o mesmo ou até mais forte do que era praticado.

Só consegui pegar um pouco de ritmo novamente depois de quase 05 meses parado por vários problemas já mencionados anteriormente neste blog, e foi em Agosto que dei um boost treinando com mochila e tudo.

Se você já fez 25km de uma vez sem parar na vida você já sabe que é possível faze-lo novamente. É preciso ter calma para readaptar, porém na sua mente essa barreira já foi quebrada e a porta ficou aberta para você faze-lo novamente. (clique aqui para ver o mapa de como foram estes 25km)

Mas nada te prepara para o que o Caminho vai te trazer, o desafio do Caminho é único e deve ser respeitado passo a passo, no seu ritmo, na velocidade da sua respiração, acalmando a mente e controlando o coração. 

O Caminho é por si só o desafio e o preparo ao mesmo tempo.

04 - Preparação mental no tempo necessário;

Esse é muito mais difícil do que o físico. Envolve tantas coisas que é impossível de colocar em um Blog.

Resumindo....

A saudade antecipada da minha Filha e Esposa contornei com a esperança de ser um Pai e Marido melhor, uma troca que depois de muito me questionar achei justa e necessária.

Toda a ansiedade que sentia para começar a fazer o Caminho o mais rápido possível, troquei por uma longa espera de 09 meses para que eu tivesse tempo de esquecer a pressa e entendesse o quanto eu realmente queria fazer o Caminho. Se fosse fogo de palha não duraria 09 meses e com certeza eu desistiria. 

Matei minha ansiedade dando lugar a minha convicção de que o Caminho seria a coisa mais importante da minha vida quando o momento de faze-lo efetivamente chegasse, criei uma fortaleza para não desistir nem antes nem durante o Caminho de Santiago. Precisava desta certeza antes de partir.

05 - Planejamento logístico do caminho;

Eu pensei seriamente sobre comprar um belo de um guia e montar uma verdadeira sequencia de paradas, quais cidades parar, o que visitar, onde dormir, pontos turísticos e assim por diante. Mas por outro lado o Caminho de Santiago não é uma viagem de turismo, sim você acaba fazendo turismo pois vai conhecer diversos lugares diferentes, ver coisas, pessoas e lugares que nunca viu, mas a magia do Caminho está no desconhecido, deixar a dúvida e o imprevisto se transformarem na sua história e aprender a escutar o que a vida têm pra te contar. Fui deixando esta idéia de planejar as rotas e tudo mais e fui me entregando ao conceito de deixar o Caminho escrever minha história. E assim fui deixando sempre para depois a compra de um guia de viagem.

Uma coisa que eu precisava e ainda não tinha era o Passaporte do Peregrino. Este documento serve para você ingressar nos Albergues, pois só te aceitam se você tiver um desses com você. Ele também serve para documentar os lugares por onde você passou afinal todos os pontos turísticos importantes, igrejas, restaurantes e albergues possuem um carimbo, cada carimbo com sua respectiva data comprova para a Igreja que você realmente fez o Caminho. Ao chegar na Catedral de Santiago de Compostela o Peregrino se dirige ao Escritório do Peregrino que fica próximo a Catedral, e apresenta o seu Passaporte com os respectivos carimbos, com tal documento em mãos eles emitem um certificado de conclusão do Caminho de Santiago oficializado pelo Vaticano.

O Passaporte do Peregrino - Este já está cheio de carimbos.

Outro ponto importante é que ele pode servir de prova para a imigração Espanhola de que estou indo a Espanha para fazer o Caminho de Santiago de Compostela. Afinal nos últimos meses tenho ouvido bastante no rádio e na TV que brasileiros são proibidos de entrar na Espanha por falta de documentos que comprovem a intenção de turismo na Espanha.

Tinha que conseguir esse Passaporte de qualquer jeito, acabei unindo o útil ao necessário e numa bela manhã de Agosto me dirigi a Associação de Peregrinos do Caminho de Santiago que fica na cidade de São Paulo, por coincidência pertissimo de onde trabalho na Vila Mariana, na Rua França Pinto, 203.

Chegando lá me deparei na entrada com uma placa de madeira em uma casa pintada de amarelo ocre com os seguintes dizeres:

Caminho de Santiago  <- 8.331kms.

Caraca! Tava longe hein!

Toquei a campainha e fui atendido por um Senhor de meia idade, seu nome era Paulo.

Trimmmm Trimmmm

Paulo: Pois não, o que deseja?

Marcel: Gostaria de ter mais informações sobre o Caminho de Santiago. O Senhor pode me ajudar?

Paulo: Sim, entre que já conversamos.

Entrei e encontrei uma salinha pequena na parte de baixo da casa. Nas paredes vários mapas e também posters com imagens lindas do Caminho de Santiago. Existiam também diversos livros em uma prateleira de metal, eram publicações sobre o Caminho de Santiago, relatos de pessoas, guias entre outras publicações relacionadas ao Caminho. Mas existia um item que se sobressai dentre os outros me chamando muito a atenção, era uma espada emoldurada logo do lado da porta de entrada. Parecia ser algo muito importante, levava um dos símbolos mais famosos do Caminho, a Cruz dos Templários. Fiquei literalmente hipnotizado pela beleza da espada, toda prateada, cheia de adornos, linda de morrer.

Paulo: Vamos lá, o que você quer saber?

Marcel: Gostaria de ter mais informações, dicas e também entender o que preciso fazer para conseguir o Passaporte do Peregrino pois já estou com a viagem marcada e preciso dele.

Paulo: Bem, o Passaporte paramos de fornecer.

Marcel: Putz! E agora?

Paulo: Só fornecemos para sócios, mas não se preocupe, você pode adquirir o Passaporte do Peregrino em qualquer lugar no Caminho, principalmente em albergues, custa entre um e três Euros.

Marcel: Então preciso ficar sócio daqui?

Paulo: Não, nem aconselho. Além de te custar uma grana com inscrição e mensalidade da Associação não é necessário você sair daqui com ele. Paramos de fornecer simplesmente porque percebemos que muitas pessoas estavam nos procurando para usar o Passaporte do Peregrino para entrar na Espanha sem ter problemas com a imigração, o que é uma besteira pensar assim e uma falta de caráter de quem o faz. A imigração na Espanha não leva isso em consideração, você vai precisar levar pelo menos mil e quinhentos Euros em dinheiro, um seguro de viagem que cubra o período que você vai ficar por lá e de um comprovante de renda no Brasil, pode ser até seu imposto de renda.

Marcel: Mas então não preciso do Passaporte antes. Poxa, essa é novidade para mim. Tudo bem.

Paulo: Se você quiser se associar tudo bem, mas recomendo você fazer isto depois de completar o Caminho, se for só para o Passaporte é uma tremenda besteira e desperdício de dinheiro.

Marcel: Bom, entendi. O Senhor têm algumas dicas para me dar?

E neste momento ele começou um verdadeiro interrogatório sobre o Caminho comigo. Me perguntou quando eu iria, em quanto tempo eu faria, o que eu levava na mochila....

Paulo: Quanto tempo você reservou para a viagem?

Marcel: Para a viagem toda 37 dias, mas quero completar a viagem em até 30 dias andando.

Paulo: É pouco, 30 dias é o minimo que eu recomendo, apesar de algumas pessoas terminarem em até 26 dias não vale a pena se matar. Se bem que você me parece jovem e não deve ter problemas com isto.

Marcel: Alguma outra dica essencial?

Paulo: Garrafinha de plástico é a melhor coisa. Nem pense em levar cantil ou coisa assim. Algumas pessoas usam CamelBack, mas não é tão prático como a garrafinha de plastico descartável. Se perder compra outra em qualquer lugar.

Marcel: Poxa, já comprei o CamelBack.

Paulo: Tudo bem, mas mesmo assim você vai precisar da garrafinha. Importante também é o saco de dormir, mas tem que usar direito.

Marcel: Usar direito?

Paulo: É, estenda na cama assim que chegar no Albergue, ele serve para guardar o lugar e também para te proteger de pulgas e sujeira, muitos lugares a coisa não é tão limpa assim.

Marcel: Eu já tinha lido sobre isso, então isto acontece mesmo, bom saber.

Paulo: Na minha opinião o item mais importante não é um, são dois. Leve duas pochetes, uma externa grande e uma dessas para usar por dentro da roupa para guardar documentos e dinheiro.

Marcel: Duas, porque?

Paulo: É uma prevenção, coloque na pochete externa um pouco de dinheiro, o suficiente para uma semana no máximo, já na pochete interna coloque cartões de crédito, seu passaporte e o resto do dinheiro, assim se alguém tentar te roubar você não fica na mão te levam no máximo a pochete externa. Carteira nem pensar meu amigo, e fique tranquilo que na tua mochila ninguém vai mexer, ninguém quer roubar roupa suja e fedida de Peregrino.

Marcel: Puxa, não tinha pensado nisto, ótima dica!

Paulo: Leve o menos que puder pois tudo pesa. Você vai sentir isso logo no primeiro dia nos Pirineus. Na descida, outra dica, procure o caminho mais longo, ele é menos ingrime e não vai te detonar os joelhos.

Marcel: Essa é ótima, mais alguma?

Paulo: Você comprou algum Guia?

Marcel: Não, deixei para pegar uma recomendação aqui.

Paulo: Você pode procurar pelos guias da Michelin, são os melhores da Europa, se bem que hoje em dia isto é uma tremenda bobagem. Já percebi que você tem iPhone, entra no site do Eroski e baixa o aplicativo para iPhone do Caminho de Santiago. Ele é bem completo com mapas, distância e informações dos albergues, você não vai precisar de mais do que isso e te ajuda a economizar o peso do guia.

Marcel: Muito obrigado Paulo, foram informações super úteis. Alguma mais antes de eu ir embora?

Paulo: Isso é o mais importante, o resto o Caminho vai te ensinar. Curta a viagem e Bom Camino.

Sai da associação sem o meu Passaporte de Peregrino mas com ótimas dicas. Valeu muito a pena passar lá e conversar com o Paulo sobre o Caminho, afinal ele também foi Peregrino e tinha vivido a experiência além de ser alguém que no dia-a-dia vive em contato com outros Peregrinos e pessoas que ainda vão fazer o Caminho como eu. Durante nossa conversa o telefone tocou duas vezes, eram pessoas querendo mais informações, pelo visto muitos brasileiros andam se interessando mais e mais pelo Caminho.

Chegando no escritório a primeira coisa que fiz foi procurar e baixar o tal do aplicativo do Caminho para o iPhone. (clique aqui para ver o guia da Erosky on-line)

Nossa! O aplicativo era mesmo super completo, fiquei mais seguro agora pois além de ter tudo ele ainda divide o caminho em etapas e te da todas as informações realmente necessárias.

Com ele o meu iPhone virou uma das principais ferramentas para eu fazer o Caminho, ele era minha câmera fotográfica, meu computador, meu celular, minha bussola, meu marcador de kilometros e agora meu guia do Caminho.

Se você vai fazer o Caminho e têm um iPhone não pode deixar de baixar este aplicativo.

Quanto ao cantil e ao CamelBack resolvi contrariar a dica do Paulo e levar ambos. O CamelBack já vinha usando nos treinos e ele era muito útil e prático. Era só encher 1,5 litros antes de sair para caminhar que tudo deve dar certo. Já o cantil peguei o vermelho da SIGG que a Paula me deu ainda na época que trabalhava na MTV, mais um item que parecia estar me esperando ali parado até eu decidir fazer o Caminho.

06 - Pesquisa do que levar, quanto levar e o equipamento certo que deve-se comprar;

Foi longa, mas no tempo certo. 

A internet é uma ferramenta fundamental para isto, toda a pesquisa é válida, mas lembre-se que o Caminho é único para cada um, as necessidades são únicas e os valores individuais não são individuais a toa pois eles também são únicos.

No post "Na minha mochila" conto como foi escolher os itens mais importantes, os principais websites, a lista de itens e o que influenciou a escolha dos itens mais importantes para mim.

07 - Condições financeiras para completar o caminho sem se preocupar com isto durante o caminho;

Neste item eu falhei feio, mas foi por um bom motivo.

O Caminho me fazia refletir sobre uma questão fundamental... e se algo me acontecer durante o Caminho, e se eu morrer... como fica minha família? Quais são as medidas que tenho que tomar para evitar que no caso da minha morte minha Esposa e Filha não fiquem desamparadas?

Este pensamento constante me fez tomar duas decisões que literalmente acabaram com todas as minhas economias, mas eram mais do que necessárias e já estavam em tempo:

1 - Comprar e montar uma casa o quanto antes.

2 - Fazer pelo menos dois seguros de vida.

Tanto a saida do imóvel que alugávamos quanto comprar e montar uma Casa, tudo ao mesmo tempo junto além de acabar com meu dinheiro me deixou super endividado, mas era algo super necessário que a Paulinha já vinha me pedindo a um bom tempo.

Eu vivia postergando a compra da Casa pois achava que ainda não era um bom momento para fazer aquilo, ainda não tinha juntado o suficiente para dar uma boa entrada. Mas a iminência do Caminho me colocou diante de uma situação da qual eu não poderia escapar. Eu tinha que fazer isto, e fazer rápido pois o tempo estava contra mim agora.

Os seguros de vida na verdade eu já queria ter feito antes, bobagem não ter feito, esse foi fácil e nem foi tão caro. Algo necessário e responsável da minha parte que não deveria nunca ter esperado tanto para acontecer.

É engraçado pensar que o Caminho também me forçou a fazer algumas coisas antes do que eu considerava o momento certo. Isto me fez refletir que o momento certo somos nós que criamos mesmo, tá ai a prova viva disto.

Vou viajar cheio de dividas, mas tranquilo porque minha família agora tem um lugar para morar e um seguro de vida que garante minha ausência no caso do pior acontecer. 

08 - Calendário que faça sentido as condições climáticas ideais e a sua disponibilidade de tempo para percorrer o caminho;

No verão, Junho e Julho, o calor é insuportável, se bem que é a época que a maioria das pessoas na Europa fazem o Caminho.

No inverno, Novembro à Março, é loucura, imagina encarar neve e frio congelante no Caminho? Mesmo assim são famosos os Alemães e Noruegueses que optam por fazer o Caminho no inverno.

A Primavera é uma boa escolha, entre Abril e Maio, com os campos verdes a vegetação e as plantações deixam o Caminho florido e colorido, porém com maiores possibilidades de chuvas.

O ideal mesmo é o Outono, entre Agosto e Outubro, o bege e o marrom tomam conta da paisagem mas as chances de chuva são muito pequenas. A temperatura ajuda bastante, começando mais quente e terminando mais frio. Estes pontos mais o fator dos feriados em Setembro e Outubro me fizeram escolher esta época para caminhar como já expliquei acima neste mesmo post.

09 -  Procurar aconselhamento com pessoas que já fizeram o caminho;

Tirando o Ameno, meu Mentor do Caminho, conversei com o Paulo da Associação dos Peregrinos conforme já relatei aqui e também com o Mauricio Ruiz, ex-colega de trabalho na Intel.

O Ruiz havia feito o Caminho de bicicleta, uma das três opções mais comuns de se fazer o Caminho. Pegar a opinião dele e as dicas poderiam me dar outra visão do Caminho que talvez eu estivesse perdendo.

Foi em um evento da Intel, o Intel Developer Forum (IDF) que tivemos a chance de conversar rapidamente sobre o Caminho.

Ele me pareceu muito cético quanto ao Caminho, me contou alguns casos e situações que passou, mas ao contrário do que o Ameno e o Paulo me contaram ele parecia estar mais preoucupado com o exercício físico e com o fato de abdicar do conforto.

Achei estranho, mas na mesmo hora compreendi que ele fez o Caminho dele, e que fazer de bicicleta deveria ser mesmo uma experiência completamente diferente de se fazer a pé.

Gostei do nosso papo rápido, mas acho que poderia ter ido a encontros da Associação de Peregrinos, acabei deixando a chance de conhecer mais pessoas que já fizeram o Caminho escapar.

10 - Entender que não é você que escolhe fazer o Caminho, é o Caminho que escolhe você.

Talvez nestes nove meses de gestação o maior ensinamento foi ter percebido que não fui eu que escolhi fazer o Caminho, foi ele que me escolheu.

Eu sei que fui eu que comprei a passagem, pedi férias para o chefe, briguei com a Paulinha e todo mais o resto que de alguma forma se relacionou com a decisão do fazer, mas a vontade de fazer que apareceu em mim é inexplicável, nunca senti isso, não me é comum, é ao mesmo tempo inexplicável porém agora é parte inseparável de mim.

Fui escolhido para fazer o Caminho, cabe a mim passar por todos os obstáculos para conseguir chegar no objetivo final na Catedral de Santiago mesmo sabendo que o mais importante não será chegar em Santiago e sim ter passado por todo o Caminho sem desistir, sem me entregar, enfrentando meus medos e minhas angústias, me desligando do mundo e abrindo a mente e o coração para coisas novas, coisas que devem ser mais simples, um mundo mais simples porém repleto de alma.

Me jogo nas mãos do Santo, Santiago escutei o teu chamado, Santiago lá vou eu!