terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O Diabo não quer que você vá!

CarrancasTudo pode interromper seus planos.
Imagine quantas coisas podem acontecer antes de você viajar.
Imagine o que você pode deixar para trás sem ter você para cuidar ou supervisionar.
Imagine que depois de 30 dias longe do trabalho você já não queira mais.
Imagine um pé torcido um dia antes da viagem.
Imagine as dividas que você pode criar.
Imagine que alguém pode morrer.
Imagine o impossível.

E finalmente...... Imagine que você não vá.



Muitas coisas aconteceram antes do primeiro dia da minha viagem para o Caminho de Santiago de Compostela:

- Dores no meu corpo que escondi da família para não deixar ninguém preocupado;
- Meu Pai que precisa de cuidados e ajuda médica em virtude da idade avançada e do câncer de pele que vêm aumentando;
- Minha Filha que tem apenas dois anos e meio de idade e vai sentir uma falta imensa do Pai;
- A quantidade insana de trabalho no meu trabalho que vai ficar para trás;
- Minhas condições financeiras que não estavam lá essas coisas.

A frase que usei como título é metafórica, lógico, quer dizer que enfrentamos muitos obstáculos para chegar em nossos objetivos. No caso do Caminho os momentos que precedem minha partida têm sido realmente uma experiência cheia de emoções, altos e baixos, uma verdadeira montanha-russa de momentos alegres e melancólicos.

Mas o que foi mais difícil em todo este tempo de espera foi lidar com as diversas fases que a Paula, minha Esposa, passou e da maneira como ela reagiu conforme o dia da minha partida se aproximava.


As reações da minha Esposa.

A Paula enfrentou uma barra por minha causa.
Não queria que fosse assim, mas o que eu sentia era muito maior do que eu, impossível de explicar.


No começo foi assim:
Marcel: Amor, em 2012 faço 35 anos de idade, resolvi fazer o Caminho de Santiago na Espanha.
Paula: Aaaa sei, aquele Caminho.

Marcel: O que você acha?
Paula: Acho legal mas tem que ver direitinho tudo né. Olha, a novela voltou.

A conversa acima se passou em Dezembro de 2011, tinha acabado de me decidir em fazer o Caminho, aquela vontade chegou, o pensamento virou obsessão, tinha acabado de cohecer o que depois entendi que era "O Chamado".

Quando comprei a passagem:
Marcel: Amor, hoje comprei a passagem para a viagem. Embarco dia 06 de Setembro.
Paula: Como assim? Como você pode fazer isso assim? Você já falou com seu chefe? E quanto tempo vai ser? E a Julia, vai ficar sozinha aqui comigo?

Marcel: Calma Amor, não vou deixar vocês na mão, muito pelo contrário decidi que antes de ir vou arrumar um monte de coisas que estavam pendentes.
Paula: Como assim Marcel?

Marcel: Vou fazer o seguro de vida, que já deveria ter feito, e vou dar um jeito de comprar uma casa para nós. Não é o melhor momento para comprar uma casa mas por outro lado se eu nunca tomar a iniciativa nunca sai e o Caminho me convenceu disto.
Paula: Tá bom, mas acho que você tem que repensar esta viagem. E quanto a Casa, já venho falando isso para você faz tempo e você nunca me deu ouvidos.

A compra da passagem mexeu muito com ela, foi a partir deste dia, no começo de Fevereiro de 2012, que ela encarou minha viagem de uma forma mais séria. Agora era pra valer na concepção dela, acho que ela nunca poderia acreditar que eu ia levar a sério o que falei para ela em Dezembro de 2011.


A dois meses da partida:
Paula: Precisamos conversar, acho que você está sendo muito irresponsável com esta viagem, vai deixar para trás sua Filha de dois anos e meio de idade e sua Esposa, ambas sozinhas por 37 dias. Isso não é certo além de ser um tremendo egoísmo da sua parte em usar as suas férias para ficar sozinho ao invés de ficar com a família.
Marcel: Meu Amor, eu entendo o que você está me dizendo, acho que você está certa, mas você precisa entender que é algo maior do que Eu, preciso fazer isto ou nunca vou me perdoar. Preciso zerar a minha cabeça, ficar longe de tudo por um tempo. Gostaria que vocês fossem, mas este tipo de viagem é algo que a pessoa tem que querer por si só, é uma viagem muito dura e muito difícil, imagina eu lá em um ritmo e você em outro, vamos nos distanciar em vez de nos unir. Com a Julia então seria um castigo para uma criança de dois anos e meio de idade passar pelas privações que o Caminho trás.
Paula: Como que você pode me dizer que precisa ficar só, francamente Marcel, não consigo entender.

Estes últimos dois meses que precederam a viagem foram muito intensos. A Paula ficava cada vez mais angustiada, eu via isso nela claramente, mas toda vez que tentava acessa-la a conversa virava uma discussão que quase sempre virava uma briga de casal.

Foi muito complexo segurar a onda de emoções, seguir em frente sem desistir mediante de tanta pressão que ela me colocou. Em um determinado momento, depois de tantas brigas comecei a pensar que após a viagem a separação seria inevitável. Este pensamento era triste, carregado de sentimentos ruins que eu não gostava de elaborar na minha mente.

Evitávamos falar sobre a viagem, sobre o Caminho, isto estava desgastando muito nosso relacionamento.

Na última semana:
Paula: Entendo que você vai fazer este Caminho por causa de algo maior. Vai ser muito difícil para mim sem ter você por aqui.
Marcel: Meu amor sei que vai ser difícil  mas eu não posso evitar. Se eu desistir vou me sentir mal por toda a minha vida, se eu desistir porque você ou mesmo a Julia me pedirem além de me sentir mal por não atender a um Chamado ainda vou indiretamente culpar vocês por isso. É duro, é difícil para mim também deixar vocês aqui, mas tenho que ir.

Depois desta conversa ela mudou radicalmente o comportamento, ficou mais calma, queria saber mais do Caminho, era a Paula que eu precisava, aparecendo nos 48' minutos do segundo tempo para me dar o apoio que eu precisava.

Por mais incrível que pareça, a apenas um dia da viagem, pela primeira vez nos nove meses que antecederam a data da partida, ela me faz a seguinte pergunta:

Paula: Qual o motivo de você fazer este Caminho, o que te move?
Marcel: Eu poderia dizer um monte de coisas, coisas como a aventura, como ficar sozinho para zerar a cabeça de tanto trabalho, enfrentar o inesperado, provar uma vida mais simples e humilde, resgatar minha religiosidade.... mas nada disso seria sincero, a verdade é que eu simplesmente não tenho um motivo, não tenho uma razão. O que me move é este sentimento profundo e determinante de que preciso fazer isto e nada pode me impedir.

Choramos juntos.


A última barba antes do Caminho a Santiago da Compostela.
Última barba antes da viagem.
O último dia no Brasil, o dia da viagem.
Esperei tanto por isso, foram vários estágios, muita preparação, muitas conversas sobre isso. E o dia chegou.

Um churrasco que fiz em casa no final de semana que antecedeu minha ida ajudou a quebrar o gelo da minha ansiedade. Convidei amigos e família para comemorar não só a viagem mas também nossa nova casa.

Foi algo muito bom, muito legal, ajudou a deixar o clima mais animado com a Juju e com a Paulinha.

Já estava ficando paranoico, tudo era o Caminho, até na data de validade do Yakult encontrei a data de partida da minha viagem, 06 de Setembro de 2012.

No dia da partida acordei cedo como sempre.
Mas desta vez seria diferente.
Queria ficar um pouco com a Juju antes de ir embora.
Queria dizer adeus para a Paula do jeito certo, com calma.

O Yakult com a data da viagem.Planejamos que a Paula me levaria de carro até o escritório, eu já iria com mochila e tudo, de lá pegaria um táxi por volta das 17hrs, meu voo saia do Brasil por volta das 23hrs, precisava sair cedo do escritório por causa do transito monstro de São Paulo.

Coloquei a roupa que usaria na viagem, porém com uma camisa polo por cima para dar uma disfarçada.

Ficar aquela manhã com a Julia foi importantíssimo para mim e com certeza para ela. Foi um momento inesquecível, ficar com ela no colo e contar mais uma vez a história de que o Papai iria viajar para a Espanha, não para a Disney como ela tanto insistia em falar, e que sentiria muito a falta dela, dizer que a amo mais do que tudo na vida e escutar ela dizer depois de um abraço apertado que também me ama.

O adeus para a Paula foi na porta do prédio onde trabalho e não em casa como gostaria que fosse. Acho que fizemos isto instintivamente para evitar os sentimentos que já estavam a flor da pele.

Sai do carro e fiquei muito triste por dizer adeus, esta viagem seria o maior tempo que ficaríamos distantes um do outro desde quando nos casamos.

Abracei, beijei e disse para ficar tranquila.
Prometi que não voltaria diferente. Voltaria melhor.

Paula: Promete que você não vai se apaixonar por uma Espanhola nesse Caminho.
Marcel: Prometo meu Amor, não estou indo lá para isso. Você é a mulher da minha vida, isto é claro para mim.
Paula: Promete que você não vai mudar muito.
Marcel: Prometo que não vou voltar diferente do que sou, a essência vai ser a mesma, mas vou voltar melhor, tenho certeza.

E com um aperto no coração nos despedimos e ela foi embora dirigindo.

Subi para o escritório.

Quando entrei com aquela mochila azul nas costas, grande, com saco de dormir amarrado em cima e mosquetões laranja a mostras todo mundo ficou olhando, achando estranho pacas. Sabe, confesso que eu me diverti bastante com esta situação.

Algumas pessoas que sabiam que eu ia fazer o Caminho brincavam comigo, faziam piada, como foi o caso do Manuel Castro, responsável pelo time de vendas da ASUS no Brasil.

Manuel: Oooooooo Bonitão..... já vai então é!
Marcel: Oooooooo vovô, hoje é o dia né, já vim pronto para o Caminho.

Marcel: Preciso falar com você, preciso da sua ajuda, na minha ausência te peço que cuide do meu time.
Manuel: Pode deixar, vou ficar em cima deles, especialmente do Cael.

Manuel: E quando você voltar, vai continuar trabalhando com agente ou vai mudar a vida?
Marcel: Vou continuar trabalhando sim, mas quem sabe não dou início a um plano antigo e começo a fazer as esculturas de Carrancas em madeira que te comentei.

Era uma piada recorrente entre o Manuel e o Cael, coisa de cotidiano da vida profissional, mas que transforma o clima da empresa em algo gostoso de se viver. Eu também já havia comentado com ele que sempre tive vontade de fazer Carrancas em madeira, afinal são uma parte da cultura brasileira, algo bem peculiar do nosso país, e quanto mais feia e grande a Carranca for, mais cara ela é! Fazer Carrancas não tem como errar!

Pro meu time dei um sonoro Bom Dia, apesar de já ser umas 10:30 da manhã ainda estava valendo.

Fiz reunião com cada um deles para deixar tudo alinhado durante minhas férias. Quem cuidava do que, o que fazer na minha ausência, como me achar se fosse preciso, porém deixei claro para não fazerem isto pois queria me isolar. Com eles ficou o telefone da minha Esposa caso fosse realmente urgente e indispensável, com isso criava uma barreira social que intimidaria coisas que realmente não fossem importantes.

Por volta das 14:30, a Paula me liga.

Paula: Vou te levar ao aeroporto. Que horas te pego?
Marcel: Puxa legal, mas já conversamos sobre isso, vai ser mais triste ainda não acha?

Paula: Quero te levar, ficar mais tempo com você.
Marcel: Então tá bom, me pega aqui as 17:00 em ponto então para não ter perigo de atrasar e perder o voo.
Paula: Fechado!

Voltei para o computador tentando ainda responder meus últimos e-mails.

Dois dias antes da minha partida, meu amigo e Mentor desta viagem, Ameno Neto, me enviou uma mensagem muito bonita, uma parte em particular me marcou muito. Eu havia no passado, em algumas de nossas conversas levantado para ele minha preocupação do quanto eu poderia mudar, de quanto poderia ser complicado me readaptar a minha vida antiga depois de tanto tempo longe de tudo, afinal nunca fiz isso, nunca mudei radicalmente minha vida para viver outro tipo de vida tão diferente. Ele sempre me tranquilizou quanto a isto e neste e-mail ele colocou a seguinte frase:

"Persevere! O seu Eu verdadeiro já está lá no Portal da Glória da Catedral de Santiago de Compostela esperando por você!"

e-mail do ameno camino


A partir desta mensagem do Ameno passei a mentalizar um outro eu me esperando na porta da Catedral de Santiago.

Como seria esse outro eu?

Tentava imaginar como eu estaria literalmente. Imaginava minha forma e aparência, barbudo, mais magro, roupa desgastada, com a mochila nas costas, bandana na cabeça e segurando meu cajado. Um semblante calmo e feliz me dominava.

Será que vou ficar assim?

Na parte debaixo do e-mail estavam diversos links para vídeos no Youtube, todos muito bons, mas um em especial era sobre um documentário do Caminho de Santiago que ainda não está acabado e precisa de doações para chegar ao seu fim, mas o trailer é muito bem feito e produzido.




facebook video do caminhoPostei o primeiro vídeo acima no meu Facebook.

Foi legal ver que o Guido, pela primeira vez se interessou pelo Caminho de Santiago de Compostela de uma maneira diferente. Quem sabe um dia ele não escuta o Chamado.

Meu irmão Carlos também chegou a comentar algo, e eu respondi para ele com algo que me veio na cabeça naquele momento:

"O que aprendi até hoje do Caminho, nos meus nove meses de preparativos, é que você não escolhe fazer o Caminho, ele é que escolhe você."

As 17hrs em ponto a Paula chegou. Me ligou no celular e pediu para descer.

Os momentos finais do último dia no Brasil se aproximavam de forma incrivelmente rápida.

Tirei a camisa polo, joguei na cadeira, coloquei meu boné e dei tchau para meu time, andei em direção a saída e soltei uma frase de efeito para o time de vendas:

Marcel no escritório da ASUS Brasil antes do Caminho de Santiago de Compostela.
Meu última dia no trabalho, já pronto para a viagem.
(Foto de Gabriel Prado)
"Tchau galera, esqueçam de mim hein!"

Passei pela porta e fui embora.

Pegamos um transito daqueles que só São Paulo têm.

A Paula veio sem a Juju, deixou ela com a Avó. Melhor assim mesmo.

Foi muito bom este tempo extra com ela. Colocamos algumas ponteiros no seu devido lugar, me deixou mais calmo e confiante de que estava fazendo a coisa certa para mim e no fundo tinha a certeza que fazendo bem para mim eu faria bem para elas.

No aeroporto nos despedimos rapidamente, era melhor ela não entrar mesmo, poderíamos ficar mais tristes ainda com a despedida.

Passei naqueles quiosques que empacotam a mala em filme de pvc. Muito bom isso para poder despachar a mochila e seguir somente com a pochete.

Quando coloquei a mochila na balança do check-in deu exatos 10.1Kg. Uau! 10kg mesmo! Putz!
Com quantos quilos na mochila será que vou terminar a viagem?

Parei em uma lojinha para comprar alguma coisa do Brasil, talvez uma bandeira, um patch, sei lá. Encontrei só alguns pins, e levei três comigo.

Na fila para a polícia Federal tirei esta foto abaixo onde dá para ver o pin da bandeira do Brasil que tinha acabado de comprar e o chaveiro que o Ameno me deu.

Untitled

E lá vou eu para o Caminho de Santiago de Compostela. Serão 28 dias andando pelo interior da Espanha. Mais de 800km de muita humildade e cabeça aberta. Vão comigo os meus medos, meus pensamentos, meus valores e toda a saudade do tudo que fica para trás.

Tudo isso pesa mais, muito mais que os 10kg da minha mochila.

Este é um caminho onde o inesperado é o meu aliado, a paisagem meu wallpaper e as pessoas que eu encontrar serão meu Facebook.

O físico será meu inimigo, mas tenho que aprender a transformar um inimigo no meu melhor amigo.

Lá vou eu viver a vida de um Conchero em terra Peregrina! Ultreya!

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